A terceira apresentação da noite de 2022 do Festival de Parintins trouxe à tona uma das mais emocionantes e enigmáticas lendas da Amazônia: a história do Pássaro Primal e o nascimento das aves. Essa lenda ganhou vida no palco, encantando o público ao contar uma narrativa profundamente ligada à força da resistência e à celebração da vida.
A história nos é trazida pelos Kaiapós, um povo indígena cujas tradições e mitos permeiam o imaginário coletivo da região. De acordo com os Kaiapós, há muito tempo a aldeia vivia sob o constante ataque de um gavião monstruoso, uma ave de rapina de tamanho gigantesco que sobrevoava os céus, caçando carne humana. O gavião representava uma ameaça fatal, mas também, paradoxalmente, simbolizava a luta pela sobrevivência e a coragem ancestral.
A história toma um rumo dramático quando, em um certo dia, o pássaro, em sua busca insaciável por carne, observa um curumim aprendendo a tecer um cesto de tucum. Com um voo rasante e voraz, o gavião captura o menino, cravando suas garras na costa e levando-o para devorar em seu ninho. O destino do curumim parecia selado, mas a sabedoria dos homens mais velhos da aldeia ainda tinha algo a dizer.
Os anciãos decidem que dois rapazes seriam submersos nas águas. A crença é que as águas, com sua força mística e renovadora, confeririam aos jovens uma grande força, permitindo-lhes enfrentar a fera e vingar o sofrimento da aldeia. Eles permaneceram nesse estado por um longo tempo, até que se tornaram mais fortes, mais aptos a encarar o gavião que os ameaçava.
Com lanças feitas de ossos de felinos, bordunas de pedra e os primeiros grandes arcos e flechas, os jovens se pintaram com jenipapo. Munidos com essas armas e com o poder das águas e da ancestralidade, partiram para a morada do gavião, prontos para uma batalha épica pela sobrevivência.
A ave de rapina, com seu voo imponente e seu olhar impiedoso, parecia imbatível. Mas os jovens, com suas flautas e astúcia, conseguiram atrair o gavião para uma armadilha. Quando a ave se descuidou, cravaram-lhe uma grande lança no peito. O gavião, ao cair, foi derrotado. Mas o momento mais surpreendente e milagroso ainda estava por vir.
Com o corpo do gavião caído, os jovens, em êxtase com a vitória, sopraram sob o corpo da ave. O que aconteceu a seguir foi uma visão divina: as penas do gavião começaram a se soltar, espalhando-se pelo céu e criando uma infinidade de aves coloridas. Era o milagre da vida vencendo a morte. O sacrifício do gavião, que havia trazido tanto medo e dor, gerou a multiplicação da vida, simbolizada pelas aves que agora adornavam os céus com suas cores vibrantes.
Essa lenda, apresentada no palco do festival de Parintins, carrega consigo um significado profundo. Ela fala de luta, resistência, sabedoria ancestral e, acima de tudo, da capacidade de transformar a dor em renovação e vida. O gavião, antes uma ameaça, se torna o precursor da beleza e da diversidade da vida no céu. O nascimento das aves, como as penas que se espalham pelo ar.
O Boi Caprichoso, com sua intensidade e simbolismo, soube representar essa lenda com maestria, trazendo não apenas uma narrativa de coragem, mas também uma reflexão sobre a nossa conexão com a natureza e com o sagrado. A história do Pássaro Primal e do nascimento das aves não é apenas uma lenda antiga, mas um chamado para todos nós: a vida sempre encontra um caminho, mesmo nas circunstâncias mais difíceis. E, como as aves que surgem das penas do gavião, podemos sempre nos renovar e nos reinventar, abraçando o milagre da vida e da transformação.
