A INFLUÊNCIA DAS CULTURAS AFRO-DIASPÓRICAS NA MUSICALIDADE DO BOI CAPRICHOSO NO FESTIVAL DE PARINTINS

Na contramão do que muitos gostariam ou acham, o que seria a etnografia das culturas amazônica e afro-ameríndia, é importante pontuar que a construção do festival folclórico de Parintins, foi pautada por características que revivem as brincadeiras do folguedo do bumba meu boi. O folguedo do boi, surgiu no nordeste do Brasil e disseminou-se por quase todo território nacional. Ao espalhar-se pelo país adquiriu diferentes ritmos, temas, formas de apresentação, indumentárias, personagens, instrumentos, adereços e nomes: no Maranhão, Rio Grande do Norte, Alagoas e Piauí é chamado bumba-meu-boi; no Pará e Amazonas é boi-bumbá; no Ceará e Espírito Santo é boi-de-reis; no Paraná e Santa Catarina é boi-de-mamão,entre outras denominações (Brito; Ribeiro; Souza, 2010).

Saber de onde viemos é fundamental para compreender para onde vamos. O Caprichoso vem construindo e resgatando memórias, mostrando que nossas culturas, sejam elas afro,ribeirinha ou indígenas, estão trançadas da mesma forma que o tipiti, que foi trançado com a “finalidade” de tencionar/espremer a mandioca ou macaxeira, e desta forma, extrair a essência desse tubérculo que será a matéria prima de diversos alimentos. Utilizo da metaforicamente do tipiti, para que possamos ter o entendimento que: o “Tipiti” do festival folclórico de Parintins, sem sombra de dúvidas, é o trabalho que o boi Caprichoso vem nos apresentando há anos. “O boi Caprichoso, negro de nascença, carrega a ancestralidade de etnias e línguas (zulu remete ao grupo humano da etnia banto e à língua falada do grupo nigero-congolês) e à resistência de figuras ímpares, como Zumbi dos Palmares” (Nakanome; Silva, 2019, p. 125).

O trabalho estrutural que o Caprichoso vem tecendo, de enaltecer e enegrecer, ou melhor dizendo, de resgatar a historicidade da identidade negra do festival, vem sendo gerida por uma sistematização dialética que respeita acima de tudo, a trajetória daqueles que vieram primeiro e consolidaram a gênese do festival. Para além do resgate, o boi negro de Parintins vem fortalecendo as culturas negras que compõem as nossas tradições do boi bumba. Há de se convir que, há décadas, o caprichoso vem elucidando, seja direta ou indiretamente, uma luta pautada no antirracismo.

E na contramão disto, o contrário confabula com ideais – no olhar deste que voz escreve- que perpassam na construção social do que conhecemos como Afro-conveniência. Um dos motivos, se dá, no não pronunciamento do boi, contra-ataques epistêmicos racistas advindosde “itens” oficiais e figuras que “compõem sua diretoria”, este silêncio é estarrecedor e só comunga com a consolidação que transcorre nas teias do racismo recreativo e nas construções racistas que estruturam as nossas relações sociais. A luta antirracista é uma construção continua e não pode ser tratada como pauta Isolada, o racismo afeta as mais diversas etnias, sejam elas afro-diaspóricas ou indígenas (Moreno, 2024), é necessário o resgate à gênese do festival, para que haja a notória orientação que este festival foi pautado a partir das culturas negras presentes nesse território.

A musicalidade presente no festival é a nossa própria Kizomba, e não se faz presente somente de agora, cito aqui algumas toadas que construíram esse resgate histórico. Em 1988 o Caprichoso teve como tema “ Rei negro, um tributo a liberdade” onde uma das todas que ecoaram nesse período foi “Á raça negra” uma toda que escancarava, de certa forma, o apartheid que a África do Sul vivenciava e o racismo aqui construído. Posso assim dizer, que certas linguagens utilizadas na toada, como “branco de alma negra”, hoje, não é mais utilizada, mas para época, era uma palavra que entoava um direcionamento para uma luta contra o racismo. Já nos anos 2000, o Caprichoso reafirma para o mundo ouvir, que somos o touro Negro da América, toada ontológica que reflete o orgulho de ser construído e ter os fenótipos de seus ancestrais africanos, a negritude pulsa nesta toda, onde nos traços de sua letra, vem a afirmação do pertencimento que: o caprichoso é lindo, ele é vida, ele é belo, NEGRO DA AMÉRICA, anjo do amor. Essa toda, é um dos presentes do caprichoso para a comunidade negra.

Mais adiante me 2017, novamente há um ato de resgatar a negritude presente no boi, mas, sobretudo no festival, e uma das toadas que construiu essa caminhada foi a “ Touro encantado e a estrela de ouro” onde estrutura no imaginário caboclo, a encantaria que abriu as portas para o nosso folguedo, e tem como ator principal o MARANHÃO, que na minha singela interpretação, pode ser entendido como um dos Estados da nossa Federação, um apelido dado a um dos negros maranhasses que trouxeram o folguedo pra o nosso território ou a um ser encantado que constrói a nossa cultura popular. Em 2018 o Caprichoso enegreceu a nossa sabedoria popular com uma revolução ancestral, que perpassa pela “ancestralidade”, “terra-mãe ancestral” nos engrandecem com “boi de negro”, e esta é a toada que nos instiga a gingar de Zulu a Zumbi, na gira de um boi Afro-parintin que busca a resistência de um povo Brasil.

A toada é a lucidez da cultura, é resistência negra que mesmo com tantos relatos de sua presença, ainda é renegada.No ano de 2019, as toadas “armadura de fé”, “aruanda: as três princesas” e “boi de encantaria”, relataram os passos das influências dos panteões africanos na nossa religiosidade e cultura. Ogum, São Jorge, Mariana, Toya Jarina e Erundina foram protagonistas nessa valorização da nossa ancestralidade negra, momentos estes, deslumbrantes da diversidade cultural que é o Caprichoso, dentro do que se propõe para o festival. Em 2023, a toada “tambores da resistência” ecoou como um afago, por tantos ataques que a negritude presente na historicidade do festival veio e vem sofrendo, uma parte da letra diz: “Meu tambor vai tocar,Na Amazônia ecoar, O som da liberdade, Eu sou preto, sou festa, sou amor, Eu sou igualdade”.

A valorização do quilombo nessa toada também se faz presente da mesma forma que a espiritualidade. Não são somente palavras que soam em uma rima para compor uma música, essa toda é o grito engasgado de que “racistas não passarão”.

Em 2024, o Caprichoso nos presenteia com a toada “Málúù Dúdú”, que nos leva a reflexão do quão importante é saber de onde viemos e traz palavras que simbolizam o que, o Caprichoso é em sua essência, Málúù/ Boi, Dúdú/preto, Agbará/Força, o nosso brinquedo que é boi de encantaria. Essa toada, foi vítima de inúmeros ataques racistas, e muitos deles cometidos por quem se utiliza da afro-conveniência para se promover. Assim, como muitas todas já citadas aqui, está em especial, traz ritmos e toques específicos das culturas africanas e afro-brasileira, tal como o congo, samba cabula, axé, afoxé, barravento e adarun. Esta musicalidade enaltece o nosso pertencimento, nossa ancestralidade, e o reconhecimento de um povo e cultura marginalizado pela sociedade.

No ano de 2025, o boi nos presenteia com “Kizomba- festa da retomada” e “Caprichoso- Rei do Quilombo” onde destaco pequenos trechos para essa nossa reflexão. Em Kizomba a toada nos traz a vitalidade da nossa essência, nos convidando para uma verdadeira festa entre irmãos (KIZOMBA), ela reflete que: “Somos sóis vivos que nascemos para brilhar, Nossa arte negra é luta, amor e axé, Energia vital dessa Kizomba, Festa de comunhão de valores do Quilombo Parintins”. Não há como, não se identificar com uma harmônica que valoriza as culturas presentes no festival, o protagonismo não se dá ao negro ou indígena, mas, a valorização da nossa cultura, a negritude posta nesta toda nos remete ao que Foucault 1926-1984, define como episteme – uma estrutura subjacente e inconsciente que define o campo do conhecimento em uma determinada época – e que terá a SANKOFA como um meio de orientação. Nessa perspectiva, a sankofa nos orienta andar para frente, mas sempre que for possível/necessário devemos olhar para traz, em busca de aprendizado ou para não nos esquecermos de onde viemos.A toada “Caprichoso-Rei do Quilombo”, é simplesmente uma declaração de amor não somente ao Boi Caprichoso, mas a tudo que ele representa, em especial a negritude, “meu preto, perfeito” define toda historicidade ancestral que pulsa nas veias do festival de Parintins, reconhecer essas contribuições, vão para além de uma disputa entre dois bois em uma arena, é externar e valorizar a historicidades de negros e negras que ajudaram a construir o que hoje comecemos como Festival Folclórico de Parintins.

Jhonatas N. Moreno

Jhonatasnikito@gmail.com

Jhonatas N. Moreno, Babalorisá, Educador Popular, Técnico em percussão popular, Integrante da Comissão de Heteroidentificação da UFPE, membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros Neab – UFPE, Pesquisador do Grupo de Estudos de Cultura e Espaço da Uninassau Recife-GEC, presidentre da Liga Acadêmica Antirracista luiz Gama, integrante da Comissão Antirracista do CRESS-PE, membro do GPCOL RAÇA GÊNERO CLASSE da UFPE e discente de Serviço Social na Uninassau Recife.

REFERÊNCIAS.

BOI, Caprichoso. Boi Caprichoso 1988-Rei Negro, Tributo a Liberdade. Manaus- AM, 1988. Disponível em: https://www.facebook.com/Culturacabocla/videos/boi-caprichoso-1988-rei-negro-tributo-a-liberdadeno-ano-deinaugura%C3%A7%C3%A3o-do-bumb%C3%B3d/8602714086464285/ Acesso em 17 de jun de 2025.

BOI, Caprichoso.CD BOI CAPRICHOSO 2000 | COMPLETO (Parintins HD® Vídeos). S/L, 2000. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qt2sPrq7fKA Acesso em 17 de jun de 2025.

BOI, Caprichoso.Boi Caprichoso – CD da Galera – Toadas Oficiais 2017. Manaus, (AM), 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mRTMNapatjE Acesso em 17 de jun de 2025.

BOI, Caprichoso. Caprichoso 2018 – Sabedoria Popular Uma Revolução Ancestral (CD Oficial Completo em Alta Qualidade). Manaus, (AM), 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wA82eZc2lhs Acesso em 17 de jun de 2018.

BOI, Caprichoso. CD BOI CAPRICHOSO 2019 | COMPLETO (Parintins HD® Vídeos). S/L, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_WNz7FSt2-U Aceso em 17 de jun de 2025.

BOI, Caprichoso. CD BOI CAPRICHOSO – 2023 | COMPLETO (Parintins HD® Vídeos). S/L, 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SXi_YttFlj8 Acesso em 17 de jun de 2025.

BOI, Caprichoso. APRESENTAÇÃO DO ÁLBUM DIGITAL “CULTURA, O TRIUNFO DO POVO”. Parintins, (AM), 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rv2rB8fMwRk Acesso em 17 de jun de 2025.

BOI, Caprichoso. Show de Lançamento do Álbum: Caprichoso 2025 | É Tempo de Retomada – Ao Vivo do Curral Zeca Xibelão. Parintins, (AM), 2025. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PVByQwWMIvg Acesso em 17 de jun de 2025.

BRITO, Lydia Maria Pinto; RIBEIRO, Ednelza Macedo; SOUZA, Tereza. Bois-bumbás de Parintins: síntese metafórica da realidade? rap — Rio de Janeiro 44(1):7-30, JAN./FEV. 2010.

FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Ed. Perspectiva, São Paulo, 1978.

MORENO, Jhonatas Nascimento. Elementos para um debate do Serviço Social sobre racismo recreativo: racismo como entretenimento. Revista Mal-Estar e Sociedade, v 14, n1, p.21-35, jan-jun.de 2024, e-ISSN: 1983-6651, 2014. Disponível em: https://revista.uemg.br/index.php/gtic-malestar/article/view/8657/5221 Acesso em 17 de jun de 2025.

NAKANOME, Ericky da Silva; SILVA, Adan Renê Pereira. “BOI DE NEGRO”: ORIGENS DO RECONHECIMENTO AFRO AO BOI DE PARINTINS POR INTERMÉDIO DA ARTE. 28º Encontro nacional da Associação nacional de pesquisadores, em artes plásticas origens, Cidade de Goiás, 16 a 20 de setembro de 2019. p. 125, 2019. Disponível em:https://drive.google.com/file/d/1sH7ovH7US-k-lpacs3ZZ39sM_w6VLcul/view?usp=sharing Acesso 17 de Jun de 2025.

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